Glauber sem censura

São Paulo – José Mauro Gnaspini faz hoje na Escola de Comunicações e Artes da Universidade São Paulo uma defesa de tese que vai dar o que falar. Formado em Direito na faculdade do Largo São Francisco, ele resolveu se especializar em direito autoral e de imagem. E foi buscar na ECA-USP as condições e o orientador (Rubens Machado) para a tese de mestrado que defende em audiência pública, a partir das 10h. Com o sugestivo título de Di Glauber – O Filme como Funeral Reprodutível, Gnaspini não vai apenas analisar a obra de Glauber Rocha à luz da estética.

O que torna sua tese particularmente interessante é o fato de o autor haver descoberto falhas no processo que levou à interdição do curta Di Glauber, a pedido da filha do pintor Emiliano Di Cavalcanti, Elizabeth. Na verdade, o que ele vai provar é que não existem fundamentos jurídicos para essa interdição e, portanto, o filme de Glauber pode ser liberado, imediatamente, para exibições – a menos que a família inicie outro processo. O de número 99.111, de 1979, apresentado na 6.ª Vara Cível do Rio de Janeiro, não sustenta a proibição.

Sob a orientação de Rubens Machado, o advogado analisou detalhadamente a obra de arte glauberiana para polemizar sobre os conceitos de desrespeito e sensacionalismo invocados pela família de Di para pedir (e obter) a interdição, em juízo, do curta-metragem – que não pode ter exibições públicas no País, mas, curiosamente, já passou em retrospectivas dedicadas a Glauber no exterior.

A idéia central da tese de Gnaspini é que Glauber criou, na tela, uma espécie de funeral alternativo, cujo cerimonial se repetiria cada vez em que o filme fosse projetado. Em busca de base jurídica para a tese que pretendia desenvolver, a primeira coisa que Gnaspini fez foi procurar uma cópia do processo no Arquivo Público do Rio de Janeiro. Estarrecido, descobriu que a cópia que lá deveria estar depositada sumiu. Só conseguiu restituí-la por meio de fragmentos recolhidos em diferentes escritórios de advocacia que, ao longo dos anos, têm tratado do assunto.

É curiosa a história do filme, rodado durante o enterro de Di Cavalcanti, em outubro de 1976, no Rio. No ano seguinte, recebeu o prêmio especial do júri no Festival de Cannes. Embora curto na duração, Di Glauber é uma das obras maiores de Glauber, à altura de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe, fornecendo uma súmula do seu pensamento muito mais contundente do que o longa Idade da Terra, de 1980. Com fotografia de Mário Carneiro, Di Glauber focaliza o ambiente do velório e, depois, o enterro. A cena que mais desagrada à família é aquela em que Glauber levanta o véu que cobre o rosto do morto e grita para o operador de câmera que filme ali.

Obra de arte

O curta é uma obra de arte que não ofende a memória do morto e, como tal, recebeu o aval do júri de Cannes – a argumentação jurídica de Gnaspini pela liberação da obra baseia-se no fato de que, por equívoco ou má informação, o processo da família foi movido só contra a Embrafilme, como empresa produtora, e não contra o próprio Glauber, que detinha o inalienável direito moral de autor sobre a obra, segundo a legislação brasileira. Só processando Glauber, diretamente, a família poderia ter conseguido o embargo. Como foi deferido pela Justiça, ele não tem validade, sustenta Gnaspini. Outro processo poderia ser movido pela família, agora contra o espólio de Glauber, mas neste ínterim ficaria resguardado o direito de exibição.

A única exibição pública de Di Glauber no País ocorreu em outubro de 1994, durante a Feira do Livro de Brasília. Ela não constava no catálogo do evento, e foi uma surpresa oferecida aos visitantes pelo empresário e jornalista Oliveira Bastos para deflagrar a campanha pela liberação da obra, que deve prosseguir, agora, com a defesa da tese de mestrado de José Mauro Gnaspini.

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