Estes crápulas criativos!

Um crápula talentoso não deixa de ser crápula. Adolf Hitler não tinha talento para pintar. Então foi ser ditador. O resto todo mundo sabe. Pintou e bordou e levou milhões para o cemitério. Nero achou que era músico e botou fogo em Roma enquanto tocava uma canção. E olha que não era ‘blowin’in the wind’. Até o finado Saddam Hussein era metido a ser romancista: não teve uma crítica negativa no Iraque. O Brasil tem o caso deste bardo sonso que é José Sarney, que virou presidente por acaso e ascendeu a escritor adulado com direito a traduções mundo afora (com o patriótico empenho das embaixadas brasileiras). O melhor da carreira literária de Sarney são as críticas de seus livros feitas por Millôr Fernandes. De Marimbondos de Fogo não sobrou marimbondo nem fogo. Com Brejal dos Guajás, Millôr deu aula de crítica literária que ninguém do ramo aprendeu – ou não quis aprender.

Quando o sujeito é medíocre, tudo bem. Dá para debochar. Mas quando o camarada é genial? Aí não tem jeito. Tem de engolir o bicho. É raro. Mas acontece. Não estamos falando de sujeitos mesquinhos, traiçoeiros e invejosos. Isto tem em todo lugar. É normal no ramo. Estamos falando de tipos que sacaneiam pesado. Vamos a dois casos notórios, para ilustrar: o cineasta Elia Kazan e o escritor L. F. Céline. É inegável que foram dois grandes artistas. Mas também foram dois grandes, para não dizer um palavrão, vamos usar o seguinte eufemismo: dois homens de elevada envergadura repulsiva.

O primeiro dedurou onze colegas ao Comitê de Atividades Antiamericanas, uma espécie de inquisição revigorada em pleno Estados Unidos da América, na virada dos anos 40 para os 50. E dedurou no auge da caça às bruxas. Foi algo como chamar viatura e os ‘homens’ e apontar embaixo do assoalho a velhinha acusada de roubar litro de leite no supermercado Walmart. Kazan sabia que assinava sentença. E apontou o dedo de seta. Orson Welles comentou, com certo desdém: ‘Trocou a alma por uma piscina’. Só um crápula faz isso.

Por esta época, o dramaturgo Arthur Miller era amigo de Kazan. O diretor foi responsável pelos dois maiores sucessos de Miller na Broadway – Todos os meus filhos e A morte do caixeiro viajante. Em 1951 o dramaturgo terminou Panorama Visto da Ponte e a primeira pessoa a quem mandou a peça foi para Kazan. O diretor, lisonjeado, respondeu: ‘Li sua peça e me sentiria honrado em dirigi-la’. Miller respondeu: ‘Não quero que você a dirija. Quero apenas que saiba minha opinião pessoal sobre dedos-duros’. E nunca mais se falaram. Vamos admitir, uma porrada e tanto. Mas Kazan provou que era um sujeito que sabia levar porrada, tanto quanto dedurar alguém. Sacudiu a poeira, continuou altivo e ativo e foi em frente.

Muitos dos dedurados por Kazan não eram comunistas. Eram simpatizantes quase sempre ingênuos. E comeram o pão que o diabo amassou. Kazan, sim, tinha sido comunista; meia boca, mas tinha. E conhecia o jogo. E fez o jogo dele, que era o de livrar a cara, embora o preço pudesse ser o rabo dos outros. E depois de tudo o cara ainda saiu por ai fazendo grandes filmes, até o derradeiro, em 1975. O Último Magnata é um romance inacabado de F. Scott Fitzgerald, que trabalhou nove anos como roteirista, fracassado, em Hollywood. Kazan pegou o livro e com ele fez o melhor filme de uma obra de Fitzgerald. Depois disso, ele também virou escritor. E continuou a ganhar dinheiro. Não dá para negar: era um acaguete, mas tinha talento.

Ser dedo duro deve fazer bem à saúde. Kazan morreu aos 94 anos defendendo o direito de ser arrogante. Ele achava que a arrogância é requisito básico para ser respeitado. ‘Sem arrogância nenhum artista consegue manter a integridade’. Uma teoria interessante que alguns políticos da província levam ao pé da letra. Kazan morreu desprezado por boa parte das pessoas das quais desejava respeito, um golpe que nem a adulação dos direitistas de plantão amorteceu. Mas, como diria Welles, a piscina sobreviveu. O duro é deitar os olhos sobre a história do cinema e reconhecer: alguns dos melhores filmes do século 20 levam a lavra de Kazan. A lavra da larva.

Outro polêmico foi Louis-Fernd,inand Destouches, conhecido na literatura por L. F. Céline. Era um tipo que não conhecia meio termo. Uns, que admitem a arte independente de quem a faça, gostam dele. Os que acham necessário um mínimo compromisso com os princípios elementares de convivência humana, o abominam. Céline arrastou um penca de adjetivos ruidosos por toda a vida, penduricalhos dos quais não se livrou e com os quais não se preocupou. Os principais são: impostor, provocador, reacionário, mentiroso, messiânico, fascista, nazista, racista, anti-semita, oportunista, aventureiro, neurótico, onipotente, vingativo, louco, insano, santo, demônio, perseguidor, perseguido, farsante e gênio. E tinha mais, naturalmente. Mas é melhor ser sucinto. Em matéria de escritor maldito, Céline era imbatível. Foi mais: foi amaldiçoado.

Dito assim parece exagero. Vamos aos fatos. Céline, francês, na França ocupada por alemães, foi censurado em jornais como o Je suis partout, porta-voz dos nazistas franceses, por pegar pesado com os judeus. Os nazistas achavam que tinha de ter certos limites. Céline queria publicar textos sobre os judeus como este: ‘É preciso matá-los todos, homens, mulheres, velhos e crianças, o mais rapidamente possível’. Claro que os nazistas estavam se dedicando de maneira eficiente e exaustiva a este trabalho, mas não era preciso fazer propaganda. Alguém sensível podia ficar chocado. Céline era tão radical, que achava Hitler frouxo com a política anti-semita ‘tímida, ineficaz e tolerante’. No segmento nazista radical, não houve ninguém como ele. Era de fazer skinheads parecerem um bando de escoteiros.

O irônico em tudo isso é que outros escritores que colaboraram com o nazismo, como Abel Bonnard, Drieu La Rochelle, Robert Brasillach, Paul Chack e Georges Suarez, foram simplesmente fuzilados depois da vitória aliada. O sacana do Céline levou os juízes na bicaria com o papo de que as ideias não importam em uma obra, apenas a sua forma e abriu uma discussão que até hoje não ficou bem resolvida. Com isso, ganhou bons anos de vida, embora confinado na pequena Meudon, no interior da França. Ali, devidamente enquadrado, ele tratou de ficar de bico fechado até a morte em 10 de julho de 1961. Mas sua obra, como ele preconizou, foi reconhecida e admirada. Nem a eficiente blitz judaica internacional em assuntos culturais e de comunicação contra estes tipos abafou o prestígio do escritor que não deixou de ser considerado um dos melhores representantes da boa literatura do século 20.

Kazan foi arrogante, Céline paranóico. Dois grandes artistas. No que se refere ao respeito humano deixaram um rastro viscoso e abjeto, manifestações mais baixas a que se pode chegar. O ódio de Céline, dizem os estudiosos, tinha atenuante de matriz psicológica. Ele achava que o mundo desejava sua morte física e literária e, por legítima defesa, agia da mesma forma em relação ao mundo. Como os judeus foram se meter de bode expiatório na história de Céline, nunca ficou muito claro. E acabou assim: ele foi crápula, mas a obra não tem culpa. Assinam embaixo Maxim Gorki, Leon Trotski, Georges Bataille, Claude Levy-Strauss e outros. Kazan e Céline deixaram um grande legado cultural e um péssimo exemplo de convivência social.

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